Expansão da pobreza e desnutrição

                                  A extensão da pobreza e desnutrição
Tendo em vista que o consumo de alimentos ocorre, predominantemente, nos domicílios e considerando, também, que há redistribuição da renda dentro da família, interessa-nos classificar as pessoas de acordo com o seu rendimento familiar per capita (que é a soma de todos os rendimentos das pessoas da família dividida pelo tamanho da família).
Para avaliar a evolução da extensão da pobreza no Brasil ao longo da década de 80 são utilizados dados das Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 1981 a 1990. A Pnad de 1982 é excluída devido a problemas metodológicos na coleta das informações sobre rendimento das pessoas. São consideradas duas linhas de pobreza, com valor real fixado em 0,25 e 0,5 salário mínimo de outubro de 1981, que é o mês de referência da Pnad daquele ano. O cálculo dos valores correntes das linhas de pobreza no mês de referência das Pnad dos outros anos (sempre setembro) foi feito utilizando o Inpc restrito. Cabe ressaltar que o uso de outros deflatores pode levar a resultados substancialmente diferentes.
Utilizando o Inpc para atualizar o valor do salário mínimo de outubro de 1981 até novembro e dezembro de 1993, janeiro e fevereiro de 1994, e admitindo que esse salário seja pago no 1º dia do mês seguinte, verifica-se que o valor médio nesses quatro meses corresponde a 88 URV (1). As linhas de pobreza utilizadas correspondem, portanto, a 44 e 22 URV per capita.
Para facilitar a discussão dos resultados, o valor real do salário mínimo vigente em outubro de 1981 passa a ser indicado por SM.
É importante lembrar algumas limitações dos dados das Pnad. Sabe-se que o rendimento declarado pelas pessoas é subestimado, principalmente no caso dos rendimentos relativamente elevados. A Pnad não considera o valor da produção para autoconsumo, que é um componente importante da renda real para os pequenos agricultores. A aceleração da inflação contribui para aumentar o ruído nos dados, fazendo até mesmo com que as pessoas percam a noção dos valores monetários; isso afeta particularmente os dados da Pnad de 1989, pois em setembro daquele ano a inflação mensal, de acordo com o Inpc, atingiu 36,3%.
A tabela 1 mostra a evolução da extensão da pobreza no Brasil, de 1981 a 1990, considerando as pessoas classificadas de acordo com seu rendimento familiar per capita. Em 1990, em um total de 144,4 milhões de pessoas, 63,2 milhões (43,8% do total) tinham rendimento per capita que não ultrapassava 0,5 salário mínimo de outubro de 81 (ou 0,5 SM) e 32,9 milhões (22,8% do total) tinham rendimento per capita que não ultrapassava um quarto daquele salário mínimo. Mesmo considerando que os rendimentos declarados constituem, freqüentemente, subestimação da renda efetivamente auferida, esses dados mostram que grande parcela da população brasileira não tem poder aquisitivo suficiente para sua segurança alimentar.


Ainda na tabela 1 percebe-se que a proporção de pobres (H) em 1990 é semelhante à de 1981. Há pequena diminuição quando se adota uma linha de pobreza de 0,5 SM, mas observa-se ligeiro aumento para uma linha de pobreza igual a 0,25 SM. E óbvio que esse resultado não pode ser considerado satisfatório, principalmente quando se tem em vista os resultados obtidos nas duas décadas anteriores. Entre 1960 e 1980 o PIB per capita do Brasil cresceu mais de 140% e, apesar do aumento da desigualdade da distribuição da renda, houve substancial redução da pobreza absoluta.
Cabe ressaltar que, devido ao crescimento da população, o número de pobres pode crescer mesmo quando a proporção de pobres (H) diminui. Assim, para uma linha de pobreza de 0,5 SM, embora a proporção de pobres em 1990 seja menor do que em 1981, o número de pobres cresce de 54,5 milhões em 1981 para 63,2 milhões em 1990.
Quando se adota uma linha de pobreza igual a 0,25 SM, o número de pobres cresce de 26,6 milhões em 1981 para 32,9 milhões em 1990.
As tabelas 2 e 3 mostram os resultados obtidos distinguindo as pessoas com domicílio na área urbana das pessoas com domicílio na área rural. Embora apenas 26% da população tenha domicílio na área rural, quando se adota uma linha de pobreza de 0,25 SM per capita o número de pobres na área rural é maior do que na área urbana. Entretanto, a comparação urbano-rural com base nesses dados é limitada pelo fato de os rendimentos na área rural certamente serem mais subestimados por não se considerar o valor da produção para autoconsumo e também porque se pode argumentar que o custo de vida na área urbana é maior.






Na tabela 8 são apresentados também os valores médios e medianos do rendimento domiciliar per capita, em cada estado ou par de estados, de acordo com os dados da Pnsn (2). A figura 1 mostra o diagrama de dispersão para a prevalência de crianças menores de cinco anos com estatura muito baixa e o rendimento domiciliar per capita, mediano nas 17 unidades analisadas.


Observa-se, como seria de se esperar, que há uma correlação negativa entre prevalência de retardo de crescimento na infância e o rendimento mediano. É também notório que os estados do Norte e do Nordeste mostram prevalência de retardo de crescimento na infância relativamente alta, mesmo depois de se considerar a influência dos baixos rendimentos (fato já assinalado por Monteiro, Benício & Gouveia, 1992).
Indicando a prevalência de retardo de crescimento na infância por Y, o valor do rendimento domiciliar per capita mediano por M e criando uma variável binária B, cujo valor é um para as unidades do Norte e do Nordeste e zero para as unidades do Sudeste, Sul e Centro-Oeste, obtém-se a seguinte equação de regressão (com 17 observações):
Y = 16,2 – 0,133 M + 12,8 B             (1)
O coeficiente de determinação (R2) é igual a 92% e todos os coeficientes da regressão são significativos ao nível de 1% (3).
De acordo com a equação ajustada, para os estados do Sudeste, Sul e Centro-Oeste (com B = 0), o valor esperado da prevalência de retardo de crescimento na infância (Y) é
Y = 16,2 – 0,133 M
Por outro lado, para os estados do Norte e do Nordeste (com B = 1) esse valor esperado é, para dado valor de M, 12,8 pontos percentuais mais elevado:
Y = 29,0 – 0,133 M
As duas retas estão representadas na figura 1. Cabe assinalar os pontos relativamente afastados das respectivas retas: a prevalência de retardo de crescimento na infancia especialmente elevada no conjunto dos estados do Maranhão e Piauí; a posição relativamente favorável da Bahia, em comparação com os demais estados do Nordeste; Santa Catarina, onde a prevalência de retardo de crescimento é mais baixa que no estado de São Paulo, apesar de o rendimento mediano ser substancialmente maior neste último estado.
O fato de a desnutrição crônica (ou prevalência de retardo de crescimento) entre crianças ser mais acentuada no Norte e no Nordeste (4), mesmo depois de descontado o efeito do rendimento domiciliar, está associado ao menor acesso da população dessas regiões a serviços em larga medida dependentes da atuação governamental, como saneamento, fornecimento de água tratada, serviços de saúde e educação (Monteiro, Benício & Gouveia, 1992; Monteiro, 1992).
A influência de diversas variáveis sobre o crescimento das crianças, mesmo depois de descontado o efeito do rendimento familiar, é comprovada na análise dos dados individuais da Pnsn desenvolvida por Kassouf (1994a). Existência de água encanada na casa, esgoto e energia elétrica favorecem o crescimento das crianças.
Vários trabalhos têm demonstrado a importância da escolaridade da mãe como um dos determinantes do estado nutricional da criança. Kassouf (1994b) mostra, inclusive, que há uma interação entre escolaridade da mãe e condições sanitárias, sugerindo que aquele fator é particularmente importante para proteger a criança de condições sanitárias desfavoráveis.